Astrofísica no sertão: radiotelescópio será erguido no interior da Paraíba
A Cidade de Aguiar, no sertão da Paraíba, distante 424 quilômetros de João Pessoa, entrou em alvoroço em junho do ano passado. Gente de São Paulo e até do estrangeiro começou a frequentar o município de 5.530 habitantes castigado pela seca. O destino dos forasteiros era a Serra do Urubu, para onde instrumentos de medição foram levados — um lugar abençoado pela falta de antenas de rádio e de celular, ou seja, sem nenhuma interferência.
“Em 56 anos, desde a fundação de Aguiar, não tivemos visita de pessoas estranhas”, recorda o prefeito Lourival Lacerda Leite Filho (PTB). Por uma crença antiga de que haveria ouro naquela serra, correu pela localidade o boato de que aqueles homens haviam sido contratados por uma mineradora para extrair as riquezas da terra. Mas o verdadeiro tesouro virá do céu.
No segundo semestre, será iniciada a construção de um dos maiores radiotelescópios para “ouvir” o Universo. Há quem ainda não acredite. “Telescópio para eles é coisa que não existe, é mais fácil acreditar no ouro”, diz o prefeito de Aguiar. Não está de todo errado. Na ciência, uma das grandes corridas do ouro está em desvendar um grande mistério: o que são a matéria e a energia escuras, que representam nada menos que 96% do Universo?
Esse é o desafio do projeto que será instalado no sertão paraibano, do qual participam pesquisadores brasileiros, ingleses, chineses, suíços e uruguaios. Esses misteriosos elementos contribuíram para a formação das galáxias e ainda influenciam na estrutura cósmica.
“Pode ser que não surja nenhuma grande novidade”, explica Elcio Abdalla, físico da USP e coordenador do projeto. “Mas se descobrirmos algo por trás da matéria e da energia escuras, será o mesmo que descobrir um universo paralelo.” Sabe-se que a matéria escura tem um efeito gravitacional sobre os elementos, formando filamentos que interligam galáxias. Já a energia escura seria uma força oposta à gravidade, que repele a matéria. Ambas, contudo, não emitem luz nem interagem com ela. E é aí que entra o nosso Bingo.
Trata-se do acrônimo em inglês de um nome que assusta: Observações de Gás Neutro das Oscilações Acústicas Bariônicas. Calma! Nem é tão complicado assim. Bárion é um próton ou um nêutron dentro do núcleo de um átomo. A pesquisa vai trabalhar com o elemento mais abundante no Universo: o hidrogênio. E essa matéria vibra. Para entender, é preciso voltar no tempo, até 380 mil anos após o Big Bang, quando a chamada radiação cósmica de fundo foi emitida.
Ela contém marcas da vibração dos átomos de hidrogênio, que pode ser captada como ondas de rádio. “É como se muita gente estivesse no mar, cada um provocando ondulações. Quando vem a onda, ela carrega para a praia essas ondulações, que contêm informações sobre como as pessoas estavam se movendo”, compara Luciano Barosi, físico da Universidade Federal de Campina Grande, que também integra o projeto.
O radiotelescópio será composto de duas antenas parabólicas que devem ficar prontas até o fim deste ano. Elas vão coletar as radiações e direcioná-las a 50 captadores chamados de “cornetas”, que são como ouvidos eletrônicos. Cada um terá 4,6 metros de comprimento e 2 metros de abertura frontal, com a função de concentrar radiações e enviar dados aos computadores.
Além de abundante, o hidrogênio é atraído pela matéria escura. “Ele pode ser um traçador de como a matéria se comporta no Universo. Só sabemos que nossa galáxia é espiral pela densidade da emissão de hidrogênio, cuja variação mostra a estrutura”, explica Carlos Wuensche, astrofísico do INPE membro do projeto. “Vamos estudar como o hidrogênio se acumulou para formar as grandes estruturas de matéria observadas hoje, além da matéria e energia escuras.”
E o Bingo não estará sozinho. O projeto brasileiro contribuirá com dados para dois outros radiotelescópios: o Chime, já em operação no Canadá, e o Tianlai, que está sendo construído na China, com um espelho de 500 metros de diâmetro.
O projeto no Brasil ainda beneficiará o Square Kilometre Array (SKA), maior radiotelescópio em construção no mundo, com milhares de antenas espalhadas pela Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Deve ficar pronto em 2021. “O SKA deve se beneficiar diretamente de alguns resultados obtidos pelo Bingo, particularmente dos detalhes da instrumentação e da caracterização do ruído presente, que afeta as medidas”, diz Wuensche.
Apesar da crise, o governo brasileiro aprovou, em 2016, uma verba de R$ 10,5 milhões para o projeto. Apenas R$ 500 mil foram liberados em 2017. O investimento total gira em torno de US$ 5 milhões (cerca de R$ 17 milhões). Os recursos extras virão dos outros países integrantes, que também colaboram por meio de 30 pesquisadores.
O empreendimento levanta esperanças em Aguiar, cidade que depende exclusivamente do repasse do Fundo de Participação dos Municípios, do programa Bolsa Família e aposentadorias rurais. A população vive basicamente da agricultura de subsistência, plantando feijão e milho. De acordo com o IBGE, a renda média mensal é de um salário mínimo e meio e só 7,3% das pessoas têm ocupação.
Leite Filho espera que o Bingo se torne um ponto turístico e impulsione a economia local. Além dos benefícios à ciência, haverá projetos com os estudantes da região. “Em um local que não tem universidade, o equipamento motivará as pessoas para a ciência”, diz Barosi. “Vai interagir com a sociedade e com a educação.”
Ouvidos cósmicos
Antenas terão 40 e 45 metros, o equivalente a um campo de futebol.
Sem ruídos
Bingo será construído na Serra do Urubu, em Aguiar (PB), localizado a 424 km da capital, João Pessoa, para evitar interferências: não há antenas de rádio ou celular por perto.
(ILUSTRAÇÃO: DENIS FREITAS)
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