Por que a ciência básica é importante?
Na situação em que nos encontramos, em que o governo está reduzindo investimentos em ciência, tecnologia e educação e, ao mesmo tempo, coachings se apropriam de termos científicos para tentar validar cientificamente seu charlatanismo, é fundamental que nós professores e cientistas tentemos esclarecer a população o que é e por que nos dedicamos ao estudo da ciência básica.
Em linhas bem gerais, o que é ciência básica e o que é ciência aplicada?
A ciência básica se preocupa em responder perguntas que nascem puramente da curiosidade de um cientista sobre como o mundo funciona. A ciência aplicada visa responder a perguntas específicas sobre a aplicação do conhecimento científico, normalmente com a intenção de gerar tecnologia em um sentido amplo (desde medicamentos até televisores e métodos de ensino)[1]. No entanto, é cada vez mais difícil observar uma distinção clara entre pesquisa básica e pesquisa aplicada. A trajetória entre a obtenção de conhecimento e o desenvolvimento de aplicações voltadas para a sociedade podem demorar décadas. Um exemplo muito importante de uma teoria cuja aplicação modificou o comportamento da sociedade é a Teoria da Relatividade e o Sistema de Posicionamento Global (GPS)! Sem as correções necessárias que a teoria proporciona, nunca seríamos capazes de chegar ao nosso destino com precisão.
A pesquisa básica também pode salvar vidas e não vamos falar da pesquisa básica em biologia ou química, mas sim, em Física de Partículas e Campos e a sua aplicação em medicina! De fato, não é exagero dizer que sem o conhecimento das leis que regem o mundo atômico, nuclear e das partículas elementares, obtido ao longo do século passado, não existiriam muitos dos métodos de terapia e diagnóstico usados na medicina moderna. Exemplos? Os aparelhos de Raios-X! Acredito que atualmente é impossível existir alguém que nunca tirou um simples raio-X. Seu princípio fundamental é estudado em mecânica quântica que explica os níveis de energia que um elétron ocupa no átomo, e que algumas interações precisam de quantidades de energia previamente definidas pela natureza.
Acho que aqui é um bom momento para ressaltar duas coisas importantes: física é uma ciência experimental, ou seja, só existem leis de fenômenos observados e comprovados experimentalmente, e a física tem a única e exclusiva intenção de descrever, por meio de leis matemáticas, a natureza! Nada além disso. Então agora vamos conversar sobre os desafios atuais na área de física de partículas.
No início dos anos 1900 existia um grande turbilhão na área da física tanto teórica como experimental. Foi nesse período que grandes teorias foram iniciadas e comprovadas, como a mecânica quântica, que simplesmente serve para descrever a mecânica dos corpos subatômicos, e nada de alma e pensamentos e seres de luz. Outro exemplo é a teoria da relatividade que quebra o paradigma do tempo e espaço absolutos para os observadores, e experimentalmente, tivemos a descoberta da radioatividade e de inúmeras partículas subatômicas. Então, na teoria de partículas evoluímos das teorias dos modelos atômicos, saímos da física atômica e entramos na física de partículas – no modelo que descreve as interações entre todas as partículas que formam o nosso universo e suas leis – e é aqui que eu me encontro hoje, em conjunto com muitos pesquisadores ao redor do mundo! Eu estudo extensões do que chamamos do Modelo Padrão das partículas elementares[2].
Modelo Padrão é uma teoria baseada na Teoria Quântica de Campos que é capaz de descrever todas as interações de partículas subatômicas. Porém, até o presente momento ele (o modelo) não é capaz de descrever as interações devidas à gravidade. Podemos dividir o Modelo Padrão em duas teorias semelhantes matematicamente, mas com evidências experimentais completamente distintas: a teoria eletrofraca, que descreve interações via forças eletromagnéticas e fracas, e a cromodinâmica quântica, a teoria da força nuclear forte. Ambas as teorias são modelos matemáticos que descrevem as interações entre as partículas em termos da troca de partículas mensageiras intermediárias que têm uma unidade de momento angular intrínseco, ou spin.
Além dessas partículas que transportam força, existem ainda os quarks e os léptons, e há seis variedades, ou “sabores”, de cada um, relacionadas aos pares em três “gerações” de massa crescente. A matéria cotidiana é construída a partir dos membros da geração mais leve: os quarks “up” e “down” que compõem os prótons e nêutrons dos núcleos atômicos; o elétron orbita dentro de átomos e participa de átomos de ligação juntos para formar moléculas e estruturas mais complexas; e o neutrino do elétron que desempenha um papel na radioatividade e, portanto, influencia a estabilidade da matéria. Tipos mais pesados de quark e lépton foram descobertos em estudos de interações de partículas de alta energia, tanto em laboratórios científicos com aceleradores de partículas quanto nas reações naturais de partículas de raios cósmicos de alta energia na atmosfera.
O Modelo Padrão é uma teoria bem-sucedida para prever as interações de quarks e léptons com grande precisão. No entanto, há algumas coisas para as quais esta teoria não fornece respostas satisfatórias. Tais como a matéria escura, considerando dados de uma outra grande área da física – a astrofísica – sabe-se hoje que, na verdade, o Modelo Padrão fornece respostas para apenas 4% da composição do Universo conhecido e nada diz sobre a origem de seus 23% de matéria escura e 73% de energia escura.
Uma das hipóteses, ainda não comprovada e que está sendo profundamente estudada, diz que depois do Big Bang havia a mesma quantidade de matéria e antimatéria, mas, até agora os astrofísicos praticamente só encontraram partículas, e pouquíssimas antipartículas! Chamamos este problema de assimetria entre a quantidade de matéria e antimatéria observada no Universo. Basicamente, queremos entender como e porque a matéria que forma os planetas, as estrelas e nós, conseguiu se sobressair e não se aniquilar com a antimatéria que deveria ter sido formada em mesma quantidade. E ainda temos os neutrinos, aqueles mencionados acima, que estão associados aos decaimentos atômicos. Eles estão mais ou menos dentro do Modelo Padrão. Estão previstos, mas sem massa. No entanto, sabemos, hoje, por meio de comprovações experimentais que eles possuem massa, e não é qualquer massa! É uma massa muito pequena, e é possível que essa massa, e somente a dos neutrinos, não venha totalmente do bóson de Higgs.
O próprio bóson de Higgs, após ser detectado, é um problema conceitual para o modelo, pois a sua massa, de 125 gigaelétron-volt (GeV), é muito sensível a qualquer física nova que seja relevante a escalas muito menores daquelas que temos provado. Por causa disso, temos de ajustar números gigantes para as coisas funcionarem no Modelo Padrão. Do ponto de vista teórico, essa solução é um pouco desconfortável.
Depois de tudo isso, onde me encontro?
Eu proponho modelos matemáticos que sejam capazes de explicar tudo o que já foi observado do Modelo Padrão, mas que vá além dele e seja capaz de explicar a matéria escura, a massa dos neutrinos e os parâmetros livres que existem no Modelo Padrão. Um exemplo desse estudo é a extensão do Modelo Padrão com três dubletos de Higgs e uma simetria adicional. Estes três escalares estão relacionados com a massa dos férmions e, em particular, eles podem ser os únicos responsáveis pela geração das massas de neutrinos. Se este for o caso, os valores de energia destes novos escalares devem ser bem menores que a escala eletrofraca. A hierarquia usual nos acoplamentos Yukawa, aqueles parâmetros ali de cima que precisam ser muito grandes, agora é movida por uma hierarquia na escala de massa desses novos escalares, e essa hierarquia agora pode ser justificada por razões dinâmicas[3].
Estudo, ainda, um modelo de dois dubletos escalares inertes (não interagem com a matéria ordinária, quarks e léptons) que é estabilizado por uma simetria S3, uma simetria de permutação, considerando dois cenários: (a) dois dos escalares em cada setor carregado são degenerados em massa devido a uma simetria residual, (b) não há degeneração de massa por causa da introdução de termos suaves que quebram a simetria. Uma diferença importante entre este modelo e aquele com apenas um dubleto de Higgs inerte é que ele tem o dobro do número de possíveis candidatos a matéria escura. Em particular, mostramos que, para o caso (a), é possível ter dois candidatos degenerados para a matéria escura. Além disso, no caso (b) o limite superior para a região de massa intermediária para o candidato a matéria escura do nosso modelo é maior, uma vez que obtemos um candidato com massa igual a 257 GeV[4].
Dentre outros, todos estes trabalhos precisam de comprovação experimental para sabermos qual é o correto. No entanto, cada trabalho colabora com um pequeno grão de área de conhecimento na tentativa de ficar o mais próximo de uma teoria mais completa, seja colaborando com um novo método matemático desenvolvido, seja colaborando por mostrar que aquele não é o caminho correto a ser seguido.
O Brasil tem hoje uma massa
crítica de pesquisadores especialistas que têm todas as condições para
contribuir para esta teoria. E eu tenho muito orgulho de fazer parte deste
grupo!
[1] https://marcoarmello.wordpress.com/2014/12/12/cienciabasica/
[2] https://arxiv.org/abs/hep-ph/0001283
[3] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S037026931100147X
[4] https://iopscience.iop.org/article/10.1088/0954-3899/42/10/105003/meta
Ana Carolina Bruno Machado
Possui graduação em Física (ênfase e Física Médica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004), mestrado em Física pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007) e doutorado em Doutorado em Física pelo Instituto de Física Teórica (Unesp) (2011). Atualmente é pós doutoranda da Universidade Cruzeiro do Sul de São Paulo. Tem experiência na área de Física, com ênfase em Teoria Geral de Partículas e Campos, atuando principalmente nos seguintes temas: raios x, espectros, matriz de mistura, violação de cp e física. É professora visitante na Universidade Federal do ABC, UFABC, Brasil.
Co-autora do Livro
Uma Introdução A Física Médica – Da Antiguidade Aos Tempos Atuais
Terini, R. A. ; MACHADO, A. C. B. . Uma Introdução A Física Médica – Da Antiguidade Aos Tempos Atuais. 1. ed. São Paulo: Livraria da Física, 2017. v. 1. 200p .