OUTRO LADO DAS TATUAGENS
A arte de se tatuar é milenar – foi utilizada por diversos povos, tribos e civilizações antigas. Com conotações bem diferentes das atuais, as tatuagens, no passado, eram usadas como forma de atribuir status social ou cultural. É o caso dos guerreiros da Grécia antiga, da civilização Maia e de populações indígenas, como a neozelandesa Maori. Por outro lado, as tatuagens também foram usadas em contextos discriminatórios, como nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial, em que judeus eram tatuados com números em série, como forma de identificação e desumanização.
Ao longo do tempo, os métodos e materiais empregados para fazer as tatuagens foram evoluindo. As talhadeiras feitas a partir de dentes de tubarão, ossos ou pedras, e até mesmo as facas, anteriormente utilizadas para cortar a pele após o esboço do desenho, foram substituídas por uma variação da caneta elétrica, originalmente projetada pelo inventor norte-americano Thomas Edison (1847-1931) e usada até hoje.
As tintas das tatuagens também seguem a mesma linha de evolução. Pigmentos pretos derivados de carbono (carvão), bem como pigmentos extraídos de madeira, gordura animal e resina de árvores, também eram empregados para dar cor aos desenhos tatuados. Com o passar do tempo, eles também foram substituídos por tintas que, inicialmente, apresentavam em sua composição suspensões de sais de metais diluídos em água, álcool ou glicerina. Já hoje, devido à toxicidade e ao aumento de reações alérgicas após seu uso, essas tintas foram substituídas por corantes orgânicos, os chamados corantes azo.
Como são feitas as tatuagens
A pele é o órgão de maior extensão do corpo humano, composto por três camadas: epiderme, derme e hipoderme. A epiderme, camada mais externa da pele, é bastante dinâmica, composta por células em constante renovação por descamação. Então, como as tatuagens não saem junto com as células epiteliais que morrem diariamente e são eliminadas do organismo?
Na verdade, durante a tatuagem, a pele é perfurada por diversas agulhas que estão presentes no interior da máquina de tatuagem. A partir desse processo, os pigmentos de tinta são depositados na camada mais interna da pele, a derme. Nela, as partículas de tinta são ingeridas (ou fagocitadas) por macrófagos dermais, células do sistema imunológico residentes e recrutadas pela inflamação que as perfurações causam nesse local. Os macrófagos são responsáveis pela manutenção da integridade da pele e pela defesa imunológica. Essas células fagocitam (engolem) patógenos para digeri-los e, então, eliminá-los em seu interior.
O mesmo ocorre com as partículas de tinta, mas estas não são eliminadas. Desse modo, os pigmentos ficam retidos no interior dos macrófagos dermais, garantindo a fixação das tatuagens. Assim como as células epiteliais presentes na epiderme, os macrófagos também sofrem o processo de renovação celular, ou seja, eles possuem uma meia-vida dentro do tecido que ocupam. Quando macrófagos dermais repletos de pigmentos de tinta de tatuagem morrem por apoptose (suicídio celular), macrófagos adjacentes os fagocitam, perpetuando a permanência dos pigmentos de tinta na derme.
Esse ciclo de morte e fagocitose acontece diversas vezes, permitindo que os pigmentos de tinta fiquem dispersos no local inicial de deposição da tinta, promovendo a estabilidade, mas também a perda de nitidez da tatuagem na pele, tornando necessário o seu retoque de tempos em tempos.
Além de seu papel de célula sentinela nos tecidos, os macrófagos também são capazes de transitar no organismo. É por meio desse dinamismo que essas células conseguem atingir órgãos mais distantes e também iniciar respostas imunológicas mais complexas.
O caminho dos pigmentos
Por meio da análise de tecidos de camundongos tatuados por microscopia confocal (que permite analisar imagens tridimensionais) e eletrônica de transmissão, um grupo de pesquisadores dinamarqueses demonstrou a presença de pigmentos de tatuagem pretos e vermelhos em células de Kupffer, macrófagos residentes do fígado. Esse estudo comprovou que, além da distribuição de pigmentos via circulação linfática, estes podem ganhar a circulação sanguínea e alcançar órgãos mais distantes, como o fígado, o baço e os rins.
Partículas de tinta de tatuagem de cor preta medem de 60 nm a 800 nanômetros (nm), enquanto partículas de outras cores, como o vermelho, estão em uma escala de micrômetros, mil vezes maior (µm). Os tamanhos das partículas de tinta ultrapassam os limites de filtração glomerular nos rins, tornando impossível que sejam excretadas via urina.
Desse modo, a presença de células de Kupffer repletas de pigmento de tinta de tatuagem sugere que o organismo usa essa abordagem para encapsular e tentar eliminar essas partículas. No entanto, estudos futuros são necessários para avaliar se órgãos periféricos apresentam algum tipo de afinidade por pigmentos de tinta ou se essa relação é capaz de causar algum tipo de dano ao organismo.
Fins terapêuticos
Além do uso de tatuagens como forma de representação cultural, de classes e até de hierarquia, a descoberta de uma múmia de 5.300 anos nos Alpes orientais em 1991 trouxe à tona um conceito até então desconhecido: o de tatuagens para fins terapêuticos. A múmia Otzi, ‘o homem de gelo’, apresentava 61 tatuagens em forma de linhas e cruzes, algumas das quais coincidiam com os atuais pontos de acupuntura.
Múmia de Otzi
Essa descoberta indica que as tatuagens também foram utilizadas para tratar doenças ou aliviar dores. Na sociedade moderna, o uso de tatuagens com fins médicos e terapêuticos vem sendo explorado de diferentes maneiras, e os resultados sugerem que essa abordagem pode ser promissora. A técnica de tatuagem de mamilos pós-cirurgia reconstrutiva da mama já é utilizada por várias mulheres para ajudar no restabelecimento da feminilidade e autoestima.
Estudos também estão em andamento para avaliar o uso de tatuagens para monitorar alguns tipos de doenças, como o diabetes tipo I. Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos EUA, desenvolveram nanotubos (tubos de diâmetros um milhão de vezes menores que o milímetro) sensíveis a diferentes níveis de glicose no sangue. Quando esses nanotubos encontram a glicose, eles se tornam fluorescentes e podem ser detectados por meio da luz infravermelha próxima a eles. Para que os níveis de glicose em pacientes diabéticos sejam monitorados constantemente, pesquisadores desenvolveram uma suspensão de nanotubos em solução salina, capazes de mimetizar a tinta das tatuagens.
A Harvard Medical School e o MIT Media Lab desenvolveram tintas de tatuagem que mudam de cor a partir de variações na composição do fluido intersticial (líquido presente entre as células do corpo), permitindo monitorar indicadores como os níveis de glicose e sódio.
Essa solução seria então, tatuada nas camadas mais profundas da pele, e os pacientes usariam sobre a tatuagem um dispositivo semelhante a um relógio de pulso, que exibiria os níveis de glicose no sangue. Essa ‘tatuagem’, ao contrário das tradicionais, tem durabilidade de aproximadamente seis meses, sendo necessária uma nova aplicação ao fim do período. Essa nova abordagem, além de eliminar os diversos furos nos dedos que pacientes com diabetes tipo I precisam fazer para monitorar seus níveis de glicose diários, também fornece leituras mais precisas dos níveis sanguíneos de glicose.
Vacinas promissoras
Mais recentemente, cientistas utilizaram a técnica de tatuagem para administrar vacinas contendo DNA de vírus. As vacinas de DNA de microrganismos são uma abordagem bastante promissora em relação às vacinas tradicionais, que contêm microrganismos (vivos atenuados ou mortos). Entre as vantagens, destacam-se a estimulação potente das respostas imunológicas, a ausência de agente infeccioso e, por isso, uma maior segurança e estabilidade, além da relativa facilidade de produção em larga escala. No entanto, a administração intramuscular por injeção ainda é considerada uma das vias menos eficazes de vacinação.
Estudos comparando a eficácia de vacinas para o HIV (vírus que causa Aids) e o HPV (vírus do papiloma humano) demostraram que a administração desses DNA virais via tatuagem intradérmica (DNA tattooing) é uma estratégia mais barata e eficaz, uma vez que a resposta inflamatória desencadeada durante a tatuagem funciona como um adjuvante natural potente. Além disso, estudos com modelos animais de laboratório mostraram que a administração do DNA viral, por meio de múltiplas injeções utilizando um dispositivo de tatuagem, estimula um aumento muito maior da produção de anticorpos e a ativação de outras células do sistema imunológico em comparação à imunização pela via intramuscular.
Abordagens medicamentosas
A técnica de tatuagem também parece ser promissora na administração de medicamentos para tratar doenças infecciosas, como, por exemplo, a leishmaniose. A leishmaniose cutânea (LC) – doença causada por protozoários do gênero Leishmania que infectam macrófagos dermais – pode provocar diferentes quadros clínicos, como úlceras e nódulos na pele. Injeções de medicamentos (antimônios pentavalentes) diretamente nas lesões e tratamentos sistêmicos antileishmania são atualmente as abordagens mais utilizadas para o tratamento da LC. No entanto, são tratamentos longos, dolorosos, pouco eficazes e com efeitos adversos.
Uma alternativa de grande potencial para o tratamento da LC seria a utilização de formulações tópicas, como pomadas e cremes antileishmania, mas, para serem eficientes, as drogas teriam que ser bem absorvidas e penetrar na derme de modo a atingir os macrófagos infectados – as mesmas células que ‘ingerem’ os pigmentos das tatuagens.
Baseados nisso, cientistas demonstraram que a administração da droga oleilfosfocolina (OIPC) por meio da técnica de tatuagem em camundongos alcançou, de maneira eficiente, os macrófagos dermais infectados com parasitas intracelulares, revelando um efeito potente tanto em nível clínico quanto parasitológico, o que mostra que o modo pelo qual a droga é administrada impacta diretamente em sua eficácia.
Mais estudos devem ser realizados para comprovar, de fato, a eficácia dessa nova abordagem; porém, vale ressaltar que o uso dessa técnica pode levar ao desenvolvimento de novas intervenções no tratamento de diversas outras doenças, como psoríase e câncer de pele, entre outras patologias.
Fonte: Ciência Hoje