Seu celular não vai fazer explodir o posto de gasolina
A Lei 13.440/2002, do município de São Paulo, proíbe o uso de celulares em postos de gasolina. Esta proibição estaria relacionada à presença de ondas eletromagnéticas ou de alguma faísca que poderiam causar uma explosão no estabelecimento (veja o artigo “Ciência e Pseudociência” de Marcelo Knobel, na revista Física na Escola).
Recentemente, um artigo publicado dentro do Programa Nacional de Toxicologia Americano associou os celulares ao aparecimento de tumores no cérebro e coração de ratos machos. Este estudo foi amplamente noticiado nos veículos de comunicação, como mostram estes exemplos da Folha, G1 e UOL, e pode ter causado preocupação em boa parte da população. Mas o que a ciência tem a dizer sobre a lei municipal 13.440 de 2002, e sobre as manchetes dos jornais?
A existência de um vídeo mostrando uma explosão em um posto de gasolina suscitou o aparecimento da lenda urbana de que celulares estariam relacionados a este evento e, conforme mencionamos no primeiro parágrafo, as ondas eletromagnéticas e as faíscas seriam as culpadas.
Ora, no ensino fundamental já aprendemos que a luz que chega aos nossos olhos, e que nos permite enxergar o frentista e a bomba de gasolina, são ondas eletromagnéticas. Blusas de lã em contato com o assento do carro, e o próprio carro, têm muito mais probabilidade de gerar uma faísca se comparados ao celular. Somente estes fatos, entre tantos outros que poderíamos citar, já seriam suficientes para mostrar aos vereadores que a lei 13.440 não faz nenhum sentido. Porém, em vez de conversarem com cientistas, os vereadores e a então prefeita Marta Suplicy acharam que era importante gastar o dinheiro dos impostos discutindo este assunto na Câmara Legislativa do município (sim, o tempo gasto na discussão do assunto pelos vereadores é dinheiro gasto).
Mais recentemente, o decreto n° 57.935 de 20 de outubro de 2017, introduz umas pequenas modificações em alguns artigos da lei 13.440, sendo que a única coisa razoável a se fazer seria a revogação completa da norma. Hoje em dia, essa lei mostra-se tão descabida que as próprias máquinas de pagamento nos postos, que usam a mesma tecnologia dos telefones celulares para comunicação, são utilizadas livremente ao lado das bombas de combustível.
Outro tipo de medo que gira em torno da utilização de celulares é se a radiação eletromagnética, na frequência operada pelo celular, poderia afetar a saúde das pessoas. Porém, antes de falarmos sobre isso, temos que, primeiro, entender um pouco sobre como a radiação interage com o corpo.
A radiação eletromagnética pode ser classificada de acordo com a sua frequência (a quantidade de oscilações da onda em um intervalo de tempo). Em ordem crescente de frequência temos as ondas de rádio AM e FM, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama. Vale comentar que o espectro de luz visível é uma estreitíssima faixa de frequência entre o infravermelho e o ultravioleta, a imensa maioria da radiação é invisível aos nossos olhos. Mas, como essa radiação pode afetar o nosso corpo?
As ondas mencionadas no parágrafo anterior podem também ser divididas em dois grupos: radiação ionizante e não-ionizante. A partir do ultravioleta, a onda possui uma frequência que permite que ela “arranque” elétrons de átomos e moléculas, transformando-os em íons – daí o nome, “ionizante”.
Essa alteração pode causar danos no DNA, resultando no aparecimento de um câncer. Radiação não ionizante, embora não cause alteração nos genes, também pode provocar algum dano dependendo, por exemplo, da sua potência e do tempo de exposição da pele. É só lembrar que algumas cirurgias utilizam lasers nos procedimentos. Mas voltemos ao celular.
Celulares operam com ondas que estão localizadas entre FM e micro-ondas. Pergunta: é uma radiação ionizante ou não-ionizante? A resposta é não-ionizante, ou seja, não existe possibilidade de que esta radiação, nas condições de funcionamento de um celular, tenha qualquer efeito sobre o DNA e esteja, portanto, associada a algum tipo de câncer.
Um grande estudo sobre celulares e câncer, conduzido na Dinamarca, observou cidadãos de 1982 a 1995. A conclusão: o estudo não suporta qualquer associação do uso de celulares e tumores de cérebro, glândula salivar, leucemia ou outros cânceres.
No caso do estudo mencionado no início deste texto, foi realizado um experimento com ratos e camundongos expostos à radiação de celulares de uma geração anterior a esta que estamos usando. Foi encontrado um resultado estatisticamente significante no aumento de câncer de cérebro e coração em ratos machos. Antes de pararmos de utilizar os celulares são necessárias, porém, algumas considerações sobre o resultado obtido no experimento:
O fato de terem observado a incidência de um tipo específico de câncer somente em ratos machos (não nos camundongos, machos e fêmeas, e nem em ratos fêmeas) já é motivo para alguma estranheza. Pode tratar-se apenas de um evento fortuito improvável. Veja uma análise mais detalhada sobre o estudo no Neurologica Blog.
A correlação encontrada nos resultados experimentais deveria ter, no mínimo, algum embasamento teórico. Neste caso, sendo a radiação não-ionizante e de baixa potência, qual o pressuposto teórico para considerar que esta radiação seria a causa de algum câncer? É quase análogo a considerar que algum remédio homeopático, sem nenhum princípio ativo, teria algum efeito maior do que placebo.
Supondo ainda que exista algum resultado positivo de câncer em ratos por causa da radiação do celular, a taxa de extrapolação dos estudos de câncer feitos em ratos para os humanos é menor do que 20%. Na hipótese de que este estudo específico se encaixe nesses 20%, há ainda a necessidade de se considerar o risco envolvido no uso do celular tal como ocorre no dia-a-dia, pois a exposição dos ratos à radiação se deu desde o nascimento até a morte.
Dito isto, parecem-me precipitadas as manchetes nos jornais. Escrever sem o devido cuidado pode causar um medo desnecessário da população. Medo que depois pode se transformar em uma lei descabida.
Veja que as considerações feitas sobre os aparelhos celulares também podem ser estendidas para as torres de telefonia espalhadas pela cidade. Relatos de desconfortos associados a elas devem estar provavelmente relacionados a um efeito chamado nocebo, a versão negativa do efeito placebo (assunto para um outro texto).
Tudo isto quer dizer que o uso de celular não apresenta nenhum risco para a saúde? Não. Dirigir e utilizar o celular aumenta consideravelmente a chance de acidentes no trânsito. Falar com o celular conectado à tomada pode apresentar algum risco, caso ocorra uma descarga na rede elétrica ou a bateria apresente algum defeito e exploda. Todos estes riscos reais não superam, porém, as bobagens compartilhadas por aquela tia no grupo do WhatsApp ou Facebook: elas têm potencial de fazer muito mal à saúde.
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência