A Terra é Redonda
Na era de ouro da comunicação, pululam informações falsas que buscam difundir crenças sem qualquer base científica. Conceitos consolidados ao longo de séculos, como a esfericidade da Terra, passam a ser questionados de forma simplória e irresponsável. Páginas pseudocientíficas na internet desautorizam, por exemplo, a eficácia de vacinas e a utilidade da energia nuclear. Mas, conhecer e entender o mundo a partir do método científico é a forma mais eficiente de melhorá-lo.
Um dos conselhos mais conhecidos em divulgação científica é: se há algo importante a ser dito, que seja dito logo. Cumpre-se, então, o conselho: a Terra é redonda. Para um(a) leitor(a) desavisado(a), pode parecer exagero ter que lembrar o formato de nosso planeta, mas os tempos mudam e nem sempre para melhor. Esse fato científico consolidado tem sido questionado em sítios pseudocientíficos na internet. Nossa tarefa aqui é consertar esse equívoco.
Recentemente, em todo mundo – o que inclui o Brasil –, proliferam ‘sociedades’ que defendem a teoria da Terra plana. Ao contrário do que imaginaríamos a partir de todo o conhecimento e evidências adquiridos a favor de um planeta esférico, os chamados ‘terraplanistas’ defendem a ideia de que a Terra é um disco plano, que estaria acelerado ‘para cima’, simulando o efeito da gravidade. Para os integrantes desses grupos, aliás, a gravidade não existe. Os modelos sobre a Terra plana são vários, mas a ideia básica de todos é a mesma.
Antes de prosseguirmos, vale fazer uma consideração sobre o problema do formato de nosso planeta. Não é óbvio para ninguém que ele deva ser esférico ou ter outro formato que não seja plano. Afinal, estamos em pé e, se a Terra é esférica, por que não caímos ‘pelos lados’?
A experiência diária nos indica que o modelo de uma Terra plana não é de todo inútil. Pensemos em um campo de futebol. Não devemos nos preocupar com a queda do campo para um lado ou outro. A ideia de uma Terra plana parece mesmo ser a mais simples. Mas nem sempre a solução mais simples é a correta. Se por um lado essa concepção clarifica nossa experiência imediata do dia a dia, por outro a explicação de diversos fenômenos permanece em aberto, como é o caso das marés, dos eclipses lunares, dos planetas que observamos serem esféricos, entre muitos outros.
O papel da ciência é coletar dados a respeito desses fenômenos, analisá-los e formular teorias que sejam capazes de explicar os dados observados assim como de prever futuros resultados. O processo científico pode levar muito tempo e, frequentemente, chega a conclusões sobre como o mundo funciona que não são intuitivas. Quem imaginaria que ímãs e correntes elétricas têm a ver com a luz? Um dos grandes feitos do século 19 foi explicar essa conexão, que posteriormente levou à proposição da teoria da relatividade. Os caminhos da ciência são belos e imprevisíveis.
Mas retomemos nosso ponto principal, o formato da Terra. Comecemos pelo passado, mais precisamente, pelo filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.).
Primeiros registros
O primeiro registro em que se propõe que a Terra é redonda foi feito por Aristóteles em seu livro De Caelo (Sobre o céu), em 350 a.C. Nesse livro, ele expõe sua teoria sobre o que forma e diferencia os objetos celestes dos objetos na região sublunar, isto é, na área abaixo da Lua, próxima à Terra. Essa região sublunar seria composta dos quatro elementos – terra, água, fogo e ar –, ao passo que a substância das coisas celestes seria diferente, uma substância perfeita chamada éter. Segundo Aristóteles, a Terra é uma coisa; o céu, outra. Passaram-se mais de 2.000 anos para se entender que a substância do universo é uma e a mesma em todos os lugares.
Para Aristóteles, os ‘elementos pesados’, terra e (com menos intensidade) água, buscam o seu ‘lugar natural’, que é o centro da Terra e, coincidentemente, o centro do universo. O formato esférico é o ideal nessa busca. Aqui, a ideia de uma Terra esférica surge como um ideal de perfeição, racional, sem comprovação experimental. Para a água, o lugar natural é uma concha esférica ao redor da Terra, explicando os mares. Como bolhas sobem na água, o lugar natural do ar é acima da água. Finalmente, o fogo, que sobe com mais intensidade, tem seu lugar acima do ar, ainda na camada sublunar.
Além desse raciocínio puro, Aristóteles forneceu argumentos empíricos – baseados na observação – para justificar o formato esférico da Terra. Um deles é a observação de eclipses lunares. Já era aceito que a Lua reflete a luz do Sol, ou seja, ela não tem luz própria, ideia proposta pela primeira vez pelo também filósofo grego Anaxágoras (500 a.C. – 428 a.C.). O fato de eclipses lunares apresentarem sempre o formato de um arco circular e serem causados pela sombra da Terra na Lua é um indicativo de que a Terra é esférica.
Além disso, os gregos já haviam notado que nos céus havia mais de um tipo de objeto. Alguns desses objetos ocupavam o mesmo lugar durante todo o ano – as chamadas estrelas fixas – enquanto outros detinham um movimento errático – os planetas, cujo significado em grego é, justamente, ‘errante’.
O fato de navegantes observarem um movimento das estrelas fixas à medida que se deslocavam para o norte ou sul indica que a superfície da Terra deve ser curva.
Além de perceberem que a Terra deveria ser esférica, os gregos entenderam que se tratava de uma esfera muito grande, pois o efeito de curvatura é perceptível, mas muito sutil.
À época da navegação do explorador genovês Cristóvão Colombo (1451-1506), ao contrário do que se pode pensar pelo anedotário popular, a pergunta em aberto não era se a Terra era redonda, mas qual era o seu tamanho. Essa questão tinha, claramente, um valor prático imenso, pois determinava a quantidade de água e alimento que deveria ser levada nas viagens. Colombo errou com relação ao tamanho, mas foi salvo por uma descoberta notável no meio do caminho: a América.
Em seu livro Para explicar o mundo, o físico norte-americano Steven Weinberg adiciona uma evidência que certamente já era conhecida por Aristóteles, mas que, por alguma razão, não foi mencionada em seus escritos: o fato de um barco desaparecer no horizonte à medida que se afasta do observador. Até hoje, esse é um fenômeno de fácil observação, mas igualmente encantador.
Por menos intuitiva que possa parecer, a ideia de que a Terra é redonda se firmou como um fato aceito e investigado cada vez mais. Além da ideia qualitativa sobre sua forma, os gregos se debruçaram sobre suas medidas.
A circunferência da Terra
Um dos feitos mais notáveis da filosofia natural grega foi a medida da circunferência da Terra, por Eratóstenes (276 a. C. – 194 a. C.).
Partindo da hipótese de que a Terra é uma esfera, Eratóstenes fez um raciocínio geométrico engenhoso. Ele sabia que ao meio-dia, no solstício de verão, na cidade de Siena (atual Assião, no Egito), o Sol estava exatamente no zênite — o que chamamos de Sol a pino. Nessa situação, uma pessoa em pé não projeta sombra.
É possível, por exemplo, observar o Sol diretamente a partir do fundo de um poço. Já, na cidade de Alexandria, distante de Siena, nessa mesma data e horário, o Sol não se encontra no zênite — ou seja, uma estaca projetará uma sombra (figura 1).
Para calcular a circunferência da Terra, então, Eratóstenes precisava conhecer a distância entre Siena e Alexandria, o que foi feito mediante a contratação de itinerantes, pessoas que mediam as distâncias por meio de passadas regulares. A partir de uma análise geométrica, Eratóstenes obteve um valor para a circunferência da Terra próximo do conhecido atualmente, que é 40.008 km.
Um problema histórico curioso é o fato de Eratóstenes ter usado uma medida de comprimento chamada ‘estádio’, que não tinha um valor muito bem definido, variando de 156 m à 210 m. A circunferência medida foi de 252 mil estádios; portanto, estaria entre 39.132 km a 52.920 km.
Uma análise de manuscritos da época leva a crer que Eratóstenes usou uma medida de estádio equivalente a 157,7 m, resultando em 39.700 km para a circunferência da Terra, um valor bastante próximo do real. Esse é um feito científico notável, que mostra como o pensamento científico, observações e deduções matemáticas, nos permitem enxergar algo totalmente novo e inusitado.
Coerência científica
As duas hipóteses aristotélicas, a busca dos elementos pelo seu lugar natural e as observações que levaram a conceber a Terra esférica e estática se complementam e resolvem a situação paradoxal do porquê de os viajantes não caírem à medida que se afastam rumo ao horizonte. Porém, essas mesmas ideias introduzem muitos outros problemas. Em particular, observações astronômicas mostram que a Terra gira ao redor de seu próprio eixo, além de se transladar ao redor do Sol.
Por que, então, o ar e tudo o mais que ‘está solto’ a acompanha? Por que, ao jogarmos uma pedra para cima, ela cairá no mesmo lugar?
A solução dessas questões levou muito tempo, mas não foi em vão. Podem parecer questões capazes de pôr um fim a qualquer ideia de uma Terra esférica, mas, na verdade, abriram as portas para uma nova física, a de Galileu Galilei (1564-1642) e Isaac Newton (1643-1727).
Teorias de Terra plana
Após séculos de sucesso científico, é surpreendente que haja um renascimento no interesse pelas teorias da Terra plana. Elas têm sua origem nas ideias do escritor inglês Samuel Rowbotham (1816-1884), que se baseia em um experimento, conhecido como ‘o experimento do rio Bedford’, para defender sua tese.
O rio Bedford é um canal artificial, longo, com quase 10 km de extensão. Se a Terra é, de fato, redonda, raciocinou Rowbotham, então uma estaca distante nesse rio iria sumir, um efeito semelhante ao que acontece com o desaparecimento de um barco que ruma ao horizonte. As observações de Rowbotham, porém, deram um resultado diferente: ainda era possível ver a estaca. Qual o problema, então?
O efeito observado pode ser explicado pela refração da luz próxima à superfície do rio. Ela se curva, acompanhando a Terra, o que cancelou o efeito esperado de desaparecimento.
Uma das maiores falhas que os proponentes de teorias de Terra plana têm é o abandono do método científico em troca de um método particular, conhecido como ‘zeteticismo’. Nessa filosofia dita científica, se dá valor ao que se observa com os sentidos comuns: o mundo reflete o que experimentamos. Mas, parafraseando o artista suíço-alemão Paul Klee (1879-1940), que disse que “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”, o papel da ciência é observar e entender o mundo e torná-lo visível, para além de nossos sentidos comuns.
Evidências de hoje
As observações dos pensadores gregos, apesar de antigas, ainda são evidências excelentes para sustentar a tese da Terra esférica. Mas, com toda a tecnologia que está a nossa disposição hoje, é possível fornecer ainda mais evidências de que nosso planeta não é plano.
Apesar de o horizonte parecer plano, fotos aéreas – algo inimaginável há menos de 200 anos – podem ser tiradas em voos comerciais, mostrando claramente a curvatura da Terra. Imagens de satélites em órbita da Terra também revelam que o planeta é uma esfera.
O sistema de posicionamento global (Global Positioning System – GPS) é uma dessas pequenas maravilhas tecnológicas que utilizam uma quantidade enorme de conhecimento acumulado. Usando ideias de eletromagnetismo, para tratar dos sinais emitidos, da física newtoniana, para pôr os satélites em órbita, da teoria da relatividade especial e geral, para tratar a defasagem dos sinais emitidos, e da geometria esférica do planeta, é possível nos localizar com precisão de poucos metros. Para sorte de muitos, parece que não é necessário acreditar na ciência para que ela funcione.
Moral da história
Pode-se argumentar que, do ponto de vista prático, para a maior parte das pessoas, a questão sobre a forma da Terra é irrelevante. A vida continuará seu fluxo, independentemente de se entender qual o seu formato. Mas isso é verdade sobre quase tudo; temos a impressão de que podemos seguir adiante com nossas vidas sem entrar em detalhe sobre como funciona o mundo.
O argumento, porém, não se sustenta, quando entendemos que não é apenas uma questão sobre a forma do nosso planeta, mas sobre nossa crença e confiança em um sistema lógico e coerente capaz de explicar o mundo: a ciência.
No momento em que conhecimentos consolidados como a esfericidade da Terra passam a ser questionados de maneira simplória, abrem-se as portas para um mundo ilógico, onde toda sorte de ideia pseudocientífica tem lugar. Perde-se a crença na eficácia das vacinas, na utilidade da energia nuclear, na ecologia planetária, para citar alguns de seus perigos. Procurar entender o formato de nosso planeta é procurar entender o mundo. E esse é o método mais eficiente que conhecemos para melhorá-lo.
Mas, como uma boa história merece terminar com uma boa frase, aqui vai uma sugestão. Se alguém propuser ao (à) leitor(a) que a Terra é plana, a resposta a ser dada é muito simples: “você está redondamente enganado!”. E aproveita para indicar a leitura desta revista.
Fonte: Ciência Hoje