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Você quer ser um ciborgue?

Como definir o ser humano? É o nosso corpo? Nosso genoma? Nosso comportamento? Nossa autoconsciência, nossa compaixão? Nossas mentes? Talvez todas essas opções e algumas outras? O que, agora, pode ser óbvio para a maioria das pessoas, ficará cada vez menos, devido a integração progressiva de tecnologias dentro e fora dos nossos corpos.

De acordo com o dicionário que vem no meu laptop, transumanismo é definido como “a crença ou teoria de que a espécie humana pode evoluir além de suas limitações atuais, físicas e mentais, especialmente através da ciência e da tecnologia”. Parece, sim, filme de ficção científica: pessoas voando com suas asas violeta, com pele translúcida, capazes de levantar carros com uma mão ou de ter uma memória prodigiosa.

Se você insiste numa definição purista do que significa ser “humano”, criaturas de carne e osso sem intervenções de tecnologias externas, é hora de repensar sua posição: fora comunidades isoladas, poucos no mundo de hoje são humanos “puros”.

O americano  Chris Dancy é hiperconectado a dispositivos que monitoram a qualidade do ar que respira, volume de sua voz, alimentos que ingere, temperatura ambiente e umidade, entre outras coisas
O americano Chris Dancy é hiperconectado a dispositivos que monitoram a qualidade do ar que respira, volume de sua voz, alimentos que ingere, temperatura ambiente e umidade, entre outras coisas – Divulgação.

Nossa integração com a tecnologia já está nos transformando numa outra espécie.

Considere, por exemplo, os medicamentos. Se você toma algum remédio que muda a sua química, por exemplo, contra a depressão ou pressão alta, você não é o mesmo. Você é quem você era antes mais o medicamento. Apesar de essa transformação não ir muito além do nosso estado humano atual, é já uma mudança, que ajuda milhões de pessoas no mundo, prolongando a vida de muitas delas.

A ritalina, por outro lado, muda a situação de forma mais transformadora. Por isso que é muito valorizada pelos estudantes universitários, que adoram o aumento que proporciona na capacidade cognitiva nas provas. O filme Sem Limites leva isso ao extremo.

Vitaminas, superalimentos, proteínas em pó, esteroides fazem algo de semelhante ao nível físico, melhorando a performance (muitas vezes de forma ilegal, como na triste história do ciclista Lance Armstrong, que perdeu seus sete títulos da Volta da França, o sistema imunológico, a memória, a energia sexual etc.

E os implantes prostéticos? Transformaram positivamente a vida de milhões com problemas variados de locomoção, abrindo possibilidades que, até recentemente, eram impensáveis. Testemunho isso com frequência quando participo de corridas de obstáculos e de ultramaratonas e vejo atletas com uma perna prostética.

Mas o que ocorre quando esses implantes produzem uma vantagem que vai além do que o corpo humano é capaz? Por exemplo, será que atletas com pernas prostéticas de fibras de carbono, desenhadas para produzir maior propulsão, devem competir com atletas que não usam esta tecnologia?

Nas Olimpíadas de 2012, o corredor sul-africano Oscar Pistorius (outro caso triste, acusado de ter assassinado sua namorada competiu com atletas sem deficiência. E se tivesse ganhado uma medalha? Existem rumores de que irá competir de novo nas Olimpíadas de 2020 em Tóquio.

Estamos já na era transumana. Se não são os superalimentos ou drogas que melhoram a performance atlética ou sexual, o que dizer da nossa relação com os celulares? Eles são uma extensão de quem somos, indispensáveis na vida diária.

Se esquecemos o nosso em casa, podemos ir ao desespero, “desconectados” do mundo: perdemos memória, nossa agenda de compromissos, a música que gostamos, a câmera fotográfica, notícias, GPS, e-mail, mídias sociais, jogos…Cada aplicativo que usamos, especialmente os que aumentam a funcionalidade e produtividade, é uma extensão de nossas faculdades mentais, parte de quem somos.

Alguns anos atrás, quando chegávamos na casa de alguém, íamos até a estante de livros e as prateleiras de discos (sabem o que é? Aqueles objetos de vinil preto tocados em aparelhos chamados “vitrola”) para “entender” melhor a pessoa. Agora, está tudo escondido nos aplicativos, nossa nova impressão digital. Mesmo que muitos aplicativos sejam os mesmos na maioria dos telefones, cada pessoa tem a sua coleção única, reflexo de quem é, do que gosta, de como se engaja com outras pessoas.

Numa era definida pelo acúmulo e disseminação de informação, quando é possível o acesso a quantidades enormes de dados com um ou dois comandos simples, quando podemos nos comunicar por vídeo com pessoas praticamente em todo o planeta, os celulares são instrumentos capazes de estender nossa presença, redefinindo a realidade em que vivemos.

Nossos cérebros já não são apenas a massa cinzenta dentro de nossos crânios; seus tentáculos digitais espalham-se pelo mundo. Isso é bem diferente de uma ferramenta comum, ou um par de óculos.

E o futuro? O transumanismo continuará a avançar. Tecnologias digitais, algumas incluindo a engenharia genética, serão implantados nas nossas cabeças e corpos, ou usados perifericamente, ampliando nossos sentidos e habilidade cognitiva.

Alguns terão aplicações médicas espetaculares, por exemplo, ajudando pacientes que sofrem de degeneração macular. Outros, irão modificar nossa relação sensorial com o mundo. Por que nos limitar a ver apenas uma pequena fração do espectro eletromagnético? Que tal enxergar no infravermelho? No ultravioleta? Vamos estender nossa audição, nossa memória, nosso sistema imunológico, nossa longevidade, nossa potência mental.

A pergunta que ninguém respondeu ainda é o que isso vai fazer com a nossa espécie. Estamos tomando as rédeas da evolução em nossas próprias mãos, nos reinventando como espécie. Recentemente, abordamos alguns aspectos negativos disso aqui, em particular com relação à nossa escravidão viciante pelas telas.

Será que nosso destino é, então, nos tornar menos humanos? Parece que sim, se bem que “menos” talvez seja uma qualificação equivocada. Estamos, sim, nos transformando numa nova espécie, e é difícil prever onde isso vai dar sem incluir algum exagero alarmista.

Cada vez que instalamos mais um aplicativo, podemos esperar ao menos que seja lá no que vamos nos tornar, ou no que alguns vão se tornar, que sejam sábios o suficiente para lidar com as desigualdades que certamente vão ocorrer e vão exacerbar tensões sociais. Afinal, não queremos imitar o modelo do Admirável Novo Mundo, separando a sociedade entre os super-humanos e os meramente humanos.

Fonte:
Marcelo Gleiser

Professor de física e astronomia na Universidade Dartmouth (EUA), autor de “A Simples Beleza do Inesperado”.

Cristiane Tavolaro

Sou física, professora e pesquisadora do departamento de física da PUC-SP. Trabalho com Ensino de Física, atuando principalmente em ensino de física moderna, ótica física, acústica e novas tecnologias para o ensino de física. Sou membro fundadora do GoPEF - Grupo de Pesquisa em Ensino de Física da PUC-SP e co-autora do livro paradidático Física Moderna Experimental, editado pela Manole.

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