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A mentira das terapias quânticas

O poder de matar com a força do pensamento aparece em filmes e livros de ficção científica.

Scanners é um filme canadense de 1981, do diretor David Cronenberg, que conta a história de pessoas provenientes de experiências de laboratório capazes de mover objetos, e até matar, somente com a força do pensamento (os fãs da série “The Big Bang Theory” vão se lembrar do personagem Sheldon Cooper tentando realizar essa façanha). É muito comum encontrar pessoas que se divertem com filmes ou seriados de tv que abordam esses temas paranormais, e os veem claramente como ficção, mas que realmente acreditam que podem realizar coisas no seu cotidiano somente com o poder do seu pensamento.

É claro que você pode usar o seu pensamento e decidir ir à padaria comprar um pão, mas não é desse tipo de influência mental que estou tratando aqui. Escrevo sobre a ideia errada de que o seu pensamento pode ter uma ação fantasmagórica como, por exemplo, mover objetos sem a necessidade de contato físico ou gerar energias capazes de operar curas milagrosas.

Essa ação fantasmagórica, expressão cunhada por Einstein para se referir a certos efeitos observados no campo da mecânica quântica, é constantemente invocada em outros contextos para vender alguma picaretagem. A crença de que a consciência humana pode afetar diretamente a realidade física das coisas, crença que poderia muito bem representar apenas mais uma excentricidade sem maiores consequências, tem sido associada, de forma espúria, a fenômenos quânticos, para fazer com que diversos enganos  se confundam com a ciência e com a medicina baseada em evidências.

Uma simples busca com os termos “quântica” e “saúde” no Google retorna mais de 1 milhão de links. Existe inclusive uma revista dedicada à saúde quântica  e uma universidade com um curso sobre este assunto. A maneira como esses espaços tentam passar uma ideia errada, ou uma pseudociência, para o público geral segue  um determinado padrão que podemos, por exemplo, identificar em um texto da Revista Saúde Quântica.

No texto “Saúde e cura através de energias e frequências”, dois terços são dedicados a apresentar diversos conceitos, muito bem estabelecidos na física, de forma a envolver o leitor incauto. O texto começa com a dualidade onda-partícula, passa pelo Big-Bang, aceleradores de partículas, fótons, teoria das cordas, colapso da função de onda e estados excitados de átomos. E, como em um texto pseudocientífico não poderiam faltar os argumentos de autoridade, o autor acha ainda uma maneira de citar Max Born, Erwin Schrödinger e Einstein, físicos ganhadores do prêmio Nobel, e o filósofo Platão.

Caso você não tenha entendido direito o que o autor escreveu, mas ficado com uma sensação de que a culpa é sua, por desconhecer conceitos complexos, então parte da missão do texto já foi cumprida: ao misturar, de maneira incorreta e imprecisa, diversos termos da física, o texto se fantasiou de ciência.

Vestida a roupagem científica, o autor começa a relacionar conceitos da mecânica quântica ao esoterismo: energia metafísica (prana), chi (ou qi) e medicina energética. As crenças de que o pensamento teria uma ação sobrenatural sobre a sua saúde são utilizadas, no fim do texto, para estabelecer uma conexão com a biologia e medicina: “Uma Física da Saúde, portanto, caso ela fosse introduzida na Medicina, com base no fato de que a vida e seus processos são movidos por energias e frequências, seria determinada menos por processos de substâncias e mais por processos de energia, visto que as estruturas celulares precisam de energia para executar as suas funções.”. O problema é que nada disso faz sentido.

De fato, as estruturas celulares precisam de energia para executar as suas funções. Essa energia vem dos alimentos que consumimos e é proveniente de diversas fontes, dependendo da duração da atividade física. Para atividades de curta duração, como uma corrida de 100 metros rasos, a energia provém basicamente da quebra de ATP em ADP e da hidrólise da glicose. Em atividades de maior duração, como uma maratona, a queima de gordura já começa a ter um papel dominante sobre os processos anteriores. A energia mencionada neste parágrafo provém de processos bioquímicos e não está relacionada a nenhuma frequência associada às energias esotéricas.

A mecânica quântica (ou física quântica) recebeu este nome para se distinguir da mecânica criada por Isaac Newton, chamada de newtoniana ou clássica. A mecânica quântica teve seu início no começo do século XX, e revelou uma série de regras segundo as quais o mundo dos prótons, elétrons, átomos e núcleos atômicos funciona.

A mecânica quântica talvez seja uma das teorias mais testadas na física e, embora seu nome tenha se tornado bastante popular entre as pessoas em geral, podemos arriscar – com uma probabilidade muito baixa de errar – que a imensa maioria do público não sabe exatamente o que ela de fato diz, ou significa.

Este desconhecimento permite que a mecânica quântica seja utilizada para propagar falsas ideias. Os conceitos que se aplicam ao mundo dos átomos não podem simplesmente ser estendidos para o nosso cotidiano. O mundo macroscópico em que vivemos, apesar de nele usarmos diversas tecnologias baseadas na física quântica (GPS, ressonância magnética, radioterapias, etc.), é clássico – não existe um “salto quântico” na sua vida.

Existem, porém, desdobramentos dessa associação entre ideias místicas e  mecânica quântica que podem ter consequências desastrosas. Quando uma empresa anuncia, por exemplo, um “colchão quântico: magnéticos, ortopédicos com infravermelho longo, energia bioquântica e sistema de vibroterapia com 18 posições de massagens com controle remoto”, ela está “apenas” usando uma linguagem que soa como jargão científico, mas que na verdade nada tem de ciência, para aumentar suas vendas.

Os órgãos de defesa do consumidor talvez tenham algo a dizer sobre isso, mas o produto provavelmente não causará grandes danos à saúde humana. Porém, quando algumas reconhecidas pseudociências – apoiadas também na associação espúria com a mecânica quântica – começam a interferir em tratamentos bem estabelecidos da medicina tradicional, então a situação se torna extremamente grave.

Um estudo recente publicado no Journal of the American Medical Association Oncology mostra que a utilização de terapias complementares em casos de câncer aumenta em duas vezes o risco de morte do paciente, na comparação com pacientes que não se utilizam delas. O problema surge quando o paciente, ao adotar essas práticas integrativas e complementares, abandona algum dos procedimentos da medicina tradicional. É importante mencionar que práticas reconhecidas pelo Conselho Federal de Medicina, mas sem respaldo na comunidade científica, como a homeopatia e acupuntura  (esta, na versão sem agulhas e utilizando cristais) , também se utilizam da aplicação indevida da física quântica para se vestirem de uma roupagem científica.

Em seu mais recente livro, Ciência na Alma, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Richard Dawkins escreve: “A lei pune quem difama um indivíduo conscientemente, mas deixa livre e solto quem ganha dinheiro mentindo sobre a natureza – que não pode entrar com uma ação na justiça.”. De fato, se a natureza não tem  voz ativa, as sociedades científicas têm. Assim, juntamente com as cartas de protesto sobre falta de dinheiro para a pesquisa, essas associações científicas, principalmente aquelas ligadas à fisica,  deveriam se posicionar também contrárias à má utilização da palavra “quântica” (e variações) a todas essas práticas de caráter duvidoso.

 


Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

 

Cristiane Tavolaro

Sou física, professora e pesquisadora do departamento de física da PUC-SP. Trabalho com Ensino de Física, atuando principalmente em ensino de física moderna, ótica física, acústica e novas tecnologias para o ensino de física. Sou membro fundadora do GoPEF - Grupo de Pesquisa em Ensino de Física da PUC-SP e co-autora do livro paradidático Física Moderna Experimental, editado pela Manole.

7 thoughts on “A mentira das terapias quânticas

  • É verdade, os físicos e as sociedades científicas têm sido muito passivas diante da pseudociência. Temos vários bons divulgadores que lutam contra isso o tempo todo, mas poucos cientísticas que se alinham nessas trincheiras.

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    • Podemos dizer que existem ondas associadas ao movimento de partículas (apenas partículas no nível atômico). Estas ondas carregam informação, mas, não há comprovação de eficácia de tratamento com essas ondas. Por exemplo: quando usamos um feixe de elétrons, pósitrons ou outras, para destruir um câncer, estamos usando o caráter corpuscular, e não ondulatório. Neste caso, há eficácia. Por isso há uma grande confusão sobre o que pode ser considerado tratamento quântico.

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      • Boa tarde! Tenho um familiar sendo enganado por uma varinha mágica comprada em um curso de 2000 reais. A suposta tricologista tem a audácia de falar que ao colocar a varinha em uma mão e só colocando a outra mão sobre o alimento, a varinha será capaz de falar se o alimento é dissonante ou ressonante. Absurdo! Fico indignada com isso! O que posso fazer? O nome da tricologista é: Débora Maciel e o curso é: O cabelo revela

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        • Daniela de Oliveira

          Boa tarde, Maria
          Passo pela mesma situação, só que tenho 2 familiares nessa mesma situação. É impressionante, eles fazem uma verdadeira lavagem. Creio que enquanto eles não caem em si, devemos ir nas redes sociais dessa senhora( Débora tricologista) e denunciar.
          Boa sorte!

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  • Bruno Caetano

    Concordo em parte do autor do texto. O que vejo atualmente é a formação de uma blindagem de um establishment científico sobre a abordagem destes temas alicerçado sobre uma sociedade constituída sobre uma visão dogmática e materialista de mundo. Ao invés de estudar mais a fundo o que se propõe dentro dessas comunidades, parece haver um certo receio de descobrirem de fato que a natureza dos seres, principalmente do que chamamos de consciência seja algo bem mais profundo que matéria pura e palpável (energia e informação condensada dentro do que conhecemos das leis naturais). Temos pistas deixadas como migalhas por todos os lados e isso requer sim que seja analisado dentro da luz científica, caso contrário também estaríamos deixando de fazer a própria ciência! Concordo que temos muitos charlatães neste meio, se valendo dos conceitos científicos para venderem soluções milagrosas que PODEM ATÉ TER FUNDAMENTO, VEJAM BEM, porém podem não ter passado por ESTUDOS CIENTÍFICOS OU AINDA NOSSO MEIO CIENTÍFICO não tem tecnologia ou metodologia que se aplique na validação dos fenômenos. Então vejo que é de certa forma leviano condenar algo que nem mesmo com nossa ciência de ponta temos domínio, de outro lado, é preciso ter os pés no chão para que tais fenômenos procurem ser compreendidos à luz científica, que tenhamos cientistas e doutores com mentes mais abertas, pois todos que foram contra determinados movimentos foram tachados de “fora da casinha”, alienados, “pseudocientistas” até que um belo dia, com um novo raciocínio ou avanço tecnológico, se mostraram certos em idéias e conceitos. Não podemos de fato sermos alienados com fenômenos que não se possa comprovar, porém não podemos ser engessados em sequer pesquisar e procurar entender se há viabilidade desse fenômeno ocorrer dentro do que já entendemos em nosso conhecimento científico.

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    • Cristiane Tavolaro

      Não é leviano condenar. Não há condenação. O que existe é MÉTODO CIENTÍFICO. Se os procedimentos sugeridos não foram validados pelo MÉTODO CIENTÍFICO, então é CLASSIFICADO como pseudociência. Deixará de ser e será respeitado e considerado ciência. E não adianta criticar o Método Científico. Ele nos trouxe até aqui. Pode melhorar? Pode. Mas, até a melhora será através de novas descobertas. Temos que trabalhar para fazer novas descobertas e combater a pseudociência, porque com ela, vem a antivacina e outras distorções. Não há meio termo.

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