Ensino

O que acontece quando a Inteligência Artificial vai para a escola?

Alunos sentados em uma sala de aula, cada um com seu computador estudando matemática de forma interativa. Não há livros e nem papel, lápis ou caneta nas carteiras escolares. De frente para os alunos, ao invés de um professor presente, há um display multimídia através do qual a aula é ministrada por uma professora que não está fisicamente presente na sala de aula. Ao invés de instrutores ou assistentes humanos, há robôs circulando para a sala de aula. Em linhas gerais, essa é a descrição da imagem de Shigeru Komatsuzaki intitulada “A Ascensão da Escola Computadorizada” .

“A Ascensão da Escola Computadorizada”, pelo futurista Shigeru Komatsuzaki

Essa descrição não causa nenhum espanto nos dias atuais, a não ser pelo fato de que os robôs foram idealizados para dar cascudos em alunos indisciplinados ou distraídos e por se tratar de uma imagem publicada há meio século pela revista de mangá Shōnen Sunday (少年サンデー). Em 1969, a revista publicou a “Computopia”, uma série de ensaios ilustrados prevendo o efeito que os computadores teriam sobre a vida no futuro, dentre os quais a visionária ilustração de Shigeru Komatsuzaki.

É certo que qualquer agenda de progresso e desenvolvimento passa pelo tema educação de qualidade. Por essa razão, esse é um assunto de grande preocupação mundial. De fato, a educação de qualidade para todos constitui um grande desafio a ser superado por uma parcela considerável dos países, principalmente aqueles em desenvolvimento, como o Brasil. É importante ressaltar que não se trata de um problema exclusivo de países em desenvolvimento.

Países desenvolvidos como os Estados Unidos, por exemplo, atingiram o desenvolvimento e posteriormente passaram por um ciclo de degradação da qualidade do ensino público. Não é à toa que uma das 17 metas de desenvolvimento sustentáveis adotadas pelos países membros das Nações Unidas para a Agenda de Desenvolvimento Sustentável 2030 é a Educação: “garantia de uma educação de qualidade inclusiva e equitativa, e a promoção de oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”. Mas como resolver os desafios da educação de qualidade para todos? 

Em 1984, o psicólogo educacional Benjamin Bloom publicou um estudo onde observou que era possível fazer com que o desempenho médio dos alunos aumentasse significativamente utilizando-se um sistema de mentoria individual para cada aluno. De fato, o aumento possível observado foi tal que o desempenho do pior aluno dentro desse sistema fosse superior à nota média de um grupo de alunos dentro do sistema de ensino tradicional. Apesar de ser um achado muito importante, como aplicá-lo numa realidade distante? Num mundo onde não é possível nem uma escola com alguns professores altamente qualificados em todos os cantos do mundo, como imaginar um sistema de mentoria individual? 

A resposta dos pesquisadores em Edtech é: utilizando robôs e soluções baseadas em inteligência artificial para promover uma capacidade de crescimento exponencial com baixo custo. Em 2009, Saya, um robô humanoide ministrou aulas para crianças de 10 anos numa escola no Japão. Seu criador, o visionário Prof. Hiroshi Kobayashi vislumbrou que sua criação poderia ajudar a resolver o problema de falta de professores. 

Nos EUA, o robô Bina48, criado em 2010, ministrou aulas de filosofia na academia militar de WestPoint em 2018. Talvez a maior surpresa seja o fato das escolas na Finlândia, um dos países com os índices de qualidade educacional mais altos do mundo, estar testando a utilização de robôs em sala de aula para o ensino de matemática e idiomas. Qual será o resultado e a efetividade da substituição de professores humanos por robôs? Há um papel importante da emoção, da empatia e do mecanismo de disparo de neurônios espelhos no processo de aprendizagem. Será possível obter esses mesmos efeitos com a utilização de robôs humanoides?  

Robô Saya

Os robôs talvez sejam a forma mais comum de materialização da inteligência artificial em nossas mentes. Porém, tanto a inteligência artificial como muitas de suas aplicações na educação não se restringem ao universo dos robôs. De fato, talvez elas sejam mais relevantes e promissoras do que os uso de robôs humanoides nas salas de aulas para “substituir” o papel de professores humanos.  Neste contexto, há dois conceitos promissores emergindo: o Assistente de Professor baseado em Inteligência Artificial (AI-based Teacher Assistant) e o Tutor baseado em Inteligência Artificial (AI-based Tutor). 

Uma grande parcela do trabalho de um professor ocorre fora da sala de aula. Um professor precisa preparar o material de suas aulas, pensando num roteiro didático que tenha aderência ao conteúdo programático e que esteja de acordo com a capacidade de assimilação de seus alunos, o que pode variar de turma para turma, bem como de indivíduo para indivíduo. O professor precisa preparar exercícios para que os alunos coloquem em prática os conhecimentos adquiridos em aula, bem como precisa preparar instrumentos de avaliação, sejam eles provas ou trabalhos.

Posteriormente, o professor precisa fazer a correção e dar a devolutiva de desempenho. Com o advento do e-mail, sistemas de EAD e redes sociais, os professores recebem muitas demandas de esclarecimentos, principalmente às vésperas de entrega de trabalhos e provas. Além disso, o professor precisa controlar a presença de alunos, e em alguns casos criar formas de incentivar a participação e a atenção dos alunos através do controle de notas de participação.

Para cada uma das atividades descritas, há soluções que foram ou estão sendo desenvolvidas que compõem o conceito de Assistente de Professor baseado em Inteligência Artificial. Estas soluções prometem aumentar a produtividade dos professores, e, reduzir a demanda de tempo fora das salas de aula, que, em muitos casos, não é devidamente remunerado. Ainda, soluções como a desenvolvida na universidade de Stanford, conseguem atribuir pontuação de acordo com a qualidade das perguntas de cada aluno, apenas escutando a pergunta e analisando a complexidade e o grau de engajamento para a elaboração da mesma.

Essas soluções prometem auxiliar o professor no desenvolvimento do programa e conteúdo de cada aula a partir da análise automática do desempenho dos alunos nos exercícios feitos em EAD, adaptando o conteúdo para cobrir ou reforçar tópicos de maior dificuldade. Há trabalhos acadêmicos onde foram utilizadas câmeras juntamente com soluções baseadas em inteligência artificial em sala de aula para avaliar o grau de atenção, e, entender a emoção de cada aluno a partir da leitura das respostas fisiológicas nos músculos faciais.

Assim, é possível detectar dúvida, concordância ou discordância, por exemplo, auxiliando numa avaliação constante da resposta individual de forma contínua, ao invés de uma medida esporádica através de uma prova. Por fim, soluções permitem o esclarecimento automático de dúvidas dos alunos através de e-mail. Uma solução como essa foi utilizada em 2016 na Georgia Tech e esclareceu dúvidas de alunos por e-mail sobre as lições da disciplina em questão. Os alunos não sabiam que se tratava de um algoritmo de IA ao invés de um assistente de professor humano, e, por esta razão ao final da disciplina ficaram surpresos com a revelação. 

Já o conceito do Tutor baseado em Inteligência Artificial é voltado para suportar cada aluno individualmente no seu processo de aprendizado. A ideia é que ele empregue os recursos mais efetivos para cada aluno atingir um desempenho superior. Ele pode acompanhar o aluno ao longo dos diferentes estágios de sua vida escolar até sua vida profissional, quando necessitará de constante atualização profissional.

Ao aprender como se dá o processo de aprendizado de cada aluno individualmente, esse tipo de tecnologia promete trazer uma mudança de paradigma no sistema educacional, pois o sistema automaticamente adapta o conteúdo e as atividades para cada aluno, fornece insights para o Assistente de Professor baseado em Inteligência Artificial e para os novos professores sobre cada aluno. O sistema utiliza conhecimento sobre as lacunas e as necessidades individuais para selecionar e priorizar leitura, bem como gera automaticamente conteúdo suplementar para suportar cada estratégia de ensino. Por fim, o sistema permite ainda a valorização do esforço, de forma a recompensar o processo como um todo. 

Estas soluções prometem uma facilidade na atualização curricular, pois qualquer mudança pode imediatamente ser incorporada na execução do programa de ensino, e, de forma uniforme uma cidade, estado ou país. Muitas dessas soluções descritas dependem apenas de um telefone celular, o que traz um horizonte otimista diante dos desafios educacionais existentes, dentre os quais, o de levar educação de qualidade numa escala exponencial para todos a um custo marginal muito baixo. 

No reino animal, os descendentes aprendem as habilidades necessárias para sua sobrevivência na vida adulta com seus progenitores e com seus semelhantes, da mesma forma que nós, seres humanos, fizemos até o presente. Qual será o efeito no longo prazo para a humanidade de substituirmos os professores humanos numa parcela ou na totalidade do processo educacional de nossos descendentes por robôs e algoritmos de inteligência artificial? Será que nos tornaremos seres mais evoluídos ou haverá efeitos colaterais que só perceberemos no futuro? Qual será a magnitude dos efeitos colaterais? Será que os “vírus” dos computadores do futuro poderão infectar os sistemas de ensino e influenciar no aprendizado de nossas futuras gerações? Quem controlará o que devemos aprender ou saber? A quem caberá essa decisão?

Fonte: Canaltech

Cristiane Tavolaro

Sou física, professora e pesquisadora do departamento de física da PUC-SP. Trabalho com Ensino de Física, atuando principalmente em ensino de física moderna, ótica física, acústica e novas tecnologias para o ensino de física. Sou membro fundadora do GoPEF - Grupo de Pesquisa em Ensino de Física da PUC-SP e co-autora do livro paradidático Física Moderna Experimental, editado pela Manole.

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