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Do nipah ao coronavírus: destruição da natureza expõe ser humano a doenças do mundo animal

Em 1998, morcegos na Malásia começaram a migrar em busca de alimento. Desmatamento na região para abrir espaço para agricultura e pecuária havia eliminado suas fontes de comida.

Estabeleceram-se em uma nova região onde havia produção de mangas ao lado de criações de porcos e passaram a se alimentar das frutas. Parcialmente comidas, elas caíam em cima dos porcos, que as comiam também.

Vírus carregados por morcegos muitas vezes não causam doenças neles. Em outros animais, contudo, esses vírus podem causar patologias graves.

E foi assim que um vírus saiu do morcego, pulou para porcos, onde passou por uma mutação que o deixou mais perigoso para seres humanos. Depois, espalhou entre os porcos, vendidos entre fazendeiros, e finalmente pulou para pessoas.

Chamado de “vírus Nipah”, por causa de um vilarejo na Malásia, desde 1998 este vírus já infectou centenas de pessoas na Malásia, Cingapura, Bangladesh e Índia, com alta taxa de letalidade.

É um exemplo de como a interferência do ser humano no meio-ambiente dá meia-volta e nos devolve doenças infecciosas, algo que cientistas apontam ser um problema recorrente e cada vez maior.

O morcego-de-ferradura-grande chinês (Rhinolophus ferrumequinum) é considerado o principal suspeito de ser a origem do surto de coronavírus.

Coronavírus

Ainda não há conclusões sobre como o novo coronavírus pulou de animais para seres humanos. Uma das hipóteses é que tenha sido em um mercado de alimentos em Wuhan, na China, o que fez com que muitos defendessem o fechamento de mercados do tipo, com venda de animais vivos e silvestres. Há outras hipóteses correntes.

“Nós estamos negligenciando o cenário maior”, diz à BBC News Brasil o ecologista especializado em doenças Richard Ostfeld, do Cary Institute of Ecosystem Studies, nos Estados Unidos.

“Tivemos alguns exemplos de surgimento de doenças nesses mercados com animais selvagens, como a Sars. E é importante entender que essas atividades humanas de agrupamentos estranhos de espécies que nunca ocorrem juntas na natureza influenciam esses eventos. Mas há outras maneiras pelas quais nossas atividades humanas podem facilitar o surgimento ou transmissão de doenças, como o desmatamento, a abertura de terra para agricultura, entre outros. Isso não pode ser esquecido.”

Como isso acontece?

Bom, vamos voltar ao começo de tudo. Esta doença com que estamos lidando agora é uma zoonose, uma doença infecciosa transmitida de animais para seres humanos.

Isso pode acontecer diretamente, quando um vírus “pula” de uma espécie para outra – no chamado efeito “spillover” (transbordamento) -, ou então por meio de um animal intermediário.

É bastante provável que os animais hospedeiros, que originalmente carregavam este novo coronavírus, tenham sido os morcegos. Não sabemos se houve animal intermediário ou não.

Os morcegos também foram os hospedeiros originais de outros vírus que causaram doenças em seres humanos nos últimos anos, como a Sars, o Ebola, a Mers e o vírus Nipah.

“O efeito ‘spillover’ [de transbordamento] requer duas coisas: primeiro, exposição. O morcego, por exemplo, solta um pedaço de fruta que já mordeu. Deixa ali sua saliva com o vírus, e outro animal come essa fruta. A segunda coisa é a capacidade do patógeno (organismo capaz de produzir doenças infecciosas a seus hospedeiros) de persistir no sistema da nova espécie. É preciso haver exposição e compatibilidade”, explica à BBC News Brasil o ecologista especializado em doenças Thomas Gillespie, da Emory University, dos EUA.

Quando estávamos no processo de domesticar animais, há milhares de anos, também nos expusemos a novos patógenos, explica ele. O sarampo, por exemplo, veio da interação dos humanos com rebanhos de gado. A tuberculose, por sua vez, já foi transmitida por meio do leite não pasteurizado de vacas.

Agora, estamos entrando mais em contato com patógenos de animais silvestres quando alteramos seu habitat, e em um contexto pior para nós: a densidade populacional dos seres humanos é muito mais alta, e estamos muito mais conectados, o que favorece o espalhamento da doença.

Os morcegos são a origem de muitos vírus.

Nosso papel

Quando destruímos uma floresta para abrir terras para agricultura ou pasto para pecuária, quando fazemos mineração, construímos barragens ou derrubamos árvores, eliminamos a biodiversidade ao tirar o espaço de alguns animais e criar condições para a proliferação de outros, segundo Ostfeld, do Cary Institute of Ecosystem Studies.

Acontece o seguinte: espécies maiores e mais carnívoras e predatórias que normalmente estão na região em menor densidade, precisam de mais espaço e são sensíveis a terem seus habitats diminuídos e removidos, deixam uma região quando os seres humanos interferem com suas construções, quaisquer que sejam.

Então, populações de animais menores, pragas que prosperam quando o habitat é degradado e quando animais maiores e predatórios vão embora, proliferam na região, atingindo altas densidades. São espécies como alguns tipos de morcegos, ratos e ratazanas, por exemplo, alguns dos mais relevantes para o pulo de doenças entre espécies.

“São os roedores e morcegos que ocupam nossas casas, moradias, fazendas. Eles tendem a hospedar mais patógenos danosos e a tirar vantagem dos habitats que destruímos e os que artificialmente criamos”, diz Ostfeld.

Além disso, observa a ecologista Felicia Keesing, do Bard College, no Estado de Nova York, não só convertemos habitats selvagens em áreas para agricultura para criar animais domesticados, erodindo a biodiversidade, como também criamos uma situação de alta densidade populacional de um animal domesticado e o colocamos ao lado das espécies com maior número de patógenos. Como aconteceu com os morcegos e os porcos na Malásia, por exemplo.

Aaron Bernstein, do Centro para Clima, Saúde e Meio-Ambiente da Universidade de Harvard, propõe o seguinte cenário: “Imagine que alguém chega do exterior para o Brasil e essa pessoa está com uma tosse, febre, um ferimento esquisito. Você isola essa pessoa e lhe dá o melhor tratamento médico, certo?”

“Pois bem, veja o que estamos fazendo na Terra: estamos drasticamente reduzindo o habitat para as espécies, fazendo com que seja fácil que elas se espalhem. Estamos fazendo o contrário que faríamos com uma pessoa doente: um animal que pode estar carregando um patógeno está sendo forçado a conviver com outros, aumentando a presença de patógenos em populações selvagens e aproximando essas populações aos humanos”, diz ele à BBC News Brasil.

Keesing aponta outra maneira pela qual a ação humana contribui para o surgimento de doenças. “Alguns fazendeiros dão antibióticos para os animais que criam, uma medida para eliminar bactérias que possam afetá-los. Ao fazer isso, estamos criando uma seleção natural, selecionando as bactérias mais fortes que vão prosperar no animal e ter muitos outros animais para onde se espalhar, por causa da alta densidade”, explica ela. “E, assim, essas bactérias bastante fortes podem pular para nós.”

Animais de criação podem ser fontes de superbactérias quando são tratados com antibióticos, defendem alguns especialistas.

Questionado sobre o papel da agropecuária na emergência de doenças, o especialista em comércio internacional e coordenador do Insper Agro Global, Marcos Jank, diz que é “exatamente o contrário”.

“É a agricultura mais moderna, com controle sanitário, alimentação controlada e uso de medicamentos que evitou que a gente tivesse mais pandemias.”

O processo de mecanização e modernização fez aumentar a produtividade, diz ele, além de melhorar a sanidade e nutrição dos rebanhos. “A modernização agrícola foi justamente para evitar contaminações e melhorar a genética dos animais”, afirma.

Sobre o desmatamento para abrir espaço para pecuária e agricultura, Jank e Janice Zanella, veterinária e chefe-geral da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) Suínos e Aves, dizem concordar que a modernização do setor deixou as terras mais produtivas, o que faz com que menos terras sejam desmatadas para abrir pasto.

Em cinco décadas, diz Zanella, o Brasil, por exemplo, teve incremento de cinco vezes na produção de grãos, com aumento de só duas vezes na área plantada. Assim, “isso diminui a pressão de desmatamento”, diz Jank. “O que não quer dizer que não aconteça.”

Mudanças climáticas

As mudanças climáticas, causada pelos humanos, também exercem seu papel no surgimento de novas doenças, segundo cientistas.

Gillespie exemplifica: por causa delas, muitas árvores mudaram os padrões de quando dão frutas. Isso fez com que alguns animais buscassem as mesmas árvores para se alimentar, já que não podiam contar com as árvores de antigamente.

“Imagine que morcegos, chimpanzés e gorilas procurem a mesma árvore para se alimentar, quando isso não era o normal, ou não deveria acontecer”, diz ele. Podem comer da mesma fruta, trocando fluidos. “E depois, as pessoas caçam chimpanzés”, diz ele – o processo é um caminho para o “pulo” de um vírus entre espécies.

“Sabemos muito pouco sobre o papel das mudanças climáticas e da redução da biodiversidade na emergência de doenças. Mas o pouco que sabemos é bastante significativo, e seria inteligente se fizéssemos todo o possível para barrar e destruição da vida na Terra e estabilizar o clima”, diz Bernstein, de Harvard.

“Se mais doenças estão surgindo por causa desses fatores, não queremos esperar para ver. Já estamos atrasados.”

Autoridades governamentais apreendem animais em mercado em Xinyuan para prevenir a dispersão do Sars em 2004.

Soluções

Se sabemos, então, que nosso comportamento pode provocar a emergência de mais doenças e, possivelmente, mais pandemias, o que devemos fazer?

“Podemos nos preparar melhor nas respostas para epidemias, comprando mais respiradores, preparando nosso sistema de saúde. Mas não estaremos solucionando a causa disso tudo”, afirma Keesing. Primeiro, diz ela, é preciso regular mercados com vendas de animais selvagens e a produção de carne com alta densidade de animais.

Já que banir mercados pode levar a mercados ilegais, ela sugere criar incentivos para as pessoas fazerem as coisas de forma diferente, dentro das normas e com higiene.

O antropólogo Lyle Fearnley, da Universidade de Cingapura, passou dois anos em uma região rural da China investigando a criação de animais selvagens.

Ele diz que a melhor forma é tentar reinventar a forma como esses mercados funcionam. “Fechar o mercado uma vez por semana para limpeza e exigir que espécies diferentes fiquem separadas e em locais diferentes pode diminuir as possibilidades de circulação de vírus”, sugere.

Ele também aponta que há muito preconceito em relação aos mercados, chamados de “wet market” (mercado molhado), em inglês. “Não existe esse termo em mandarim. Há uma série de mercados diferentes com uma grande variedade do que é vendido. A grande maioria desses mercados não vende animais selvagens vivos ou apresenta riscos”, diz.

“As pessoas têm medo e preconceito porque não conhecem essas feiras. Além disso, elas são minoritárias, então não podemos generalizar.”

Keesing destaca que também “precisamos levar a conservação da biodiversidade muito mais a sério”. “Muitos países preservam 11%, 12% de seus territórios. Isso não é nem perto do que precisamos de diversidade.”

Gillespie, da Emory University, diz que precisamos incluir a avaliação do risco de “spillover events”, os eventos que promovem o “pulo” do vírus de uma espécie para a outra, no momento de decidir sobre o uso de terra em larga escala.

“Nós não deveríamos subsidiar indústrias que provocarão resultados como esses, especialmente em áreas selvagens na região dos trópicos, onde o risco é mais elevado”, afirma.

“A ciência está nos dizendo que devemos reavaliar nosso relacionamento com a natureza.”

Fonte: BBC Brasil

Cristiane Tavolaro

Sou física, professora e pesquisadora do departamento de física da PUC-SP. Trabalho com Ensino de Física, atuando principalmente em ensino de física moderna, ótica física, acústica e novas tecnologias para o ensino de física. Sou membro fundadora do GoPEF - Grupo de Pesquisa em Ensino de Física da PUC-SP e co-autora do livro paradidático Física Moderna Experimental, editado pela Manole.

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